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O Conto da Princesa Kaguya | Crítica: sutileza nos traços e sensibilidade na história

Nova animação do Estúdio Ghibli nos cinemas brasileiros.

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“Não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência”.

O trecho de Viagens na minha terra (1846), do escritor português Almeida Garrett, ajuda a ilustrar, de forma bastante abrangente, não apenas o cenário, como grande parte do roteiro da animação O Conto da Princesa Kaguya (Kaguyahime no Monogatari, 2013), mais recente obra do Estúdio Ghibli a entrar em cartaz no Brasil.

Isso se deve ao fato de que ambas as obras compartilham de um tema básico, segundo o qual, a vida na natureza é melhor do que a vida na cidade. Ainda assim, essa natureza não é tão idealizada como em animações da Disney, por exemplo, uma vez que, nos campos e florestas mostrados na animação do Ghibli, assim como no trecho de Garrett, não há “nada grandioso nem sublime”, porém, “há uma simetria de cores, de tons”, sendo um lugar propício ao “sossego do espírito e o repouso do coração”.

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Diferente dessa natureza bela e aprazível, porém, um tanto quanto prosaica, é a protagonista da obra, uma princesa de tamanha beleza e magnificência que, assim como a Lua (de onde se origina) gera espanto e admiração a qualquer humano que a vislumbre, no melhor estilo proposto por Mario Quintana: “que haverá com a lua que, sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?”.

A obra é inspirada em uma antiga narrativa japonesa, O conto do cortador de bambu. Foi indicada ao Oscar de melhor animação e conta com a direção de Isao Takahata, co-fundador do estúdio e diretor do tocante Túmulo dos Vagalumes (1988). Takahata difere da maioria dos animadores, pois nunca foi um desenhista. Interessa-se mais por música e literatura, tendo se graduado em Literatura Francesa pela Universidade de Tóquio.

Com tal diretor, é de se imaginar que O Conto da Princesa Kaguya também se afaste dos estereótipos do atual cinema de animação, dominado por Pixar e Dreamworks. Assim, os atrativos vão muito além das proezas técnicas, do jogral de piadas, e dos personagens fáceis (bidimensionais). Em Kaguya, o traçado é simples, o humor é espontâneo e os personagens não são bons nem maus, pois, como disse Charles Chaplin, “a humanidade não se divide em heróis e tiranos. As suas paixões, boas e más, foram-lhe dadas pela sociedade, não pela natureza”.

Nesse sentido, a própria princesa Kaguya funciona como uma exceção. Por não ser humana, expressa uma faceta de bondade e inocência quase que permanentes. Encontrada no interior de um bambu por um casal de camponeses, ela representa essa natureza quase incorruptível. Não apenas sua origem, como seu acelerado desenvolvimento – ela cresce rápido como um bambu – fazem com que seus pais adotivos a venerem, devido à sua origem e características divinas.

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De fato é uma premissa bastante abordada. A Mulher-Maravilha, personagem criada em 1941 pelo psicólogo feminista William Moulton Marston, partia desse mesmo princípio. Em sua origem clássica, surge de uma estátua de barro cuja vida foi incutida por um sopro divino. Tão alienígena quanto Kaguya, ela não se corrompe pelos processos de socialização e também tem grandes dificuldades para entender e se inserir no mundo humano.

No filme do Ghibli, ao encontrar ouro e presentes em outros bambus, o pai de Kaguya acredita que se trata de um recado dos deuses, e utiliza esses recursos para construir uma grande mansão na cidade, repleta de serviçais e outros luxos para a filha adotiva. Em um primeiro momento, Kaguya se deslumbra com sua nova vida, mas logo passa a sentir falta da vida na floresta e das brincadeiras com seus amigos camponeses.

É uma princesa não humana, portanto, seus anseios são inefáveis. Retomando Garrett, ela quer “um reinado de amor e benevolência”, e as situações que vivencia na cidade a fazem crer que o lugar para tal reinado não é ali. Garrett também mostra a cidade e o modo de vida humano como corrupções do mundo natural, ao afirmar que, na floresta, “foi a natureza que fez tudo, ou quase tudo, e a educação nada ou quase nada”.

Kaguya reforça a tradição de protagonistas femininas do Estúdio Ghibli, personagens fortes e heterogêneas como as apresentas em Princesa Mononoke (1997), A Viagem de Chihiro (2001) e Ponyo (2008). Em comum, essas obras trazem a (aparente) fragilidade das protagonistas frente a desafios descomunais e assustadores, que mesclam monstruosidade humana e sobrenatural. Tudo isso com a inventividade, sensibilidade e delicadeza típicas do Estúdio Ghibli.

https://www.youtube.com/watch?v=LBohvCiLZ34&feature=youtu.be

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O Conto da Princesa Kaguya

kaguya-boxDiretor: Isao Takahata
Duração: 137 minutos.
Vozes: Aki Asakura, Kengo Kora, Takeo Chii, Nobuko Miyamoto
Lançamento: 16 de julho de 2015

Autor: Daniel Robledo

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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