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A polêmica de Cuties e a hipersexualização das crianças

Filme alvo de polêmica traz mensagens pertinentes à cultura de massa

A polêmica de Cuties e a hipersexualização das crianças

Cuties (Lindinhas, 2020), o filme franco-senegalês da cineasta Maïmouna Doucouré foi alvo de polêmicas desde que estreou no catálogo da Netflix. Bem-recebido no Festival de Cinema de Sundance, onde estreou em janeiro de 2020, o longa venceu o Prêmio de Direção Dramática Mundial de cinema. Porém, no Brasil, o governo chegou a pedir a suspensão do longa.

Acusado de sexualizar crianças, o governo de Jair Bolsonaro alegou que “é interesse de todos nós botarmos freio em conteúdos que coloquem as crianças em risco ou a exponham à erotização precoce”.

Por outro lado, a diretora defende seu filme como um meio importante de levantar o debate em torno da hipersexualização das crianças, em especial, das meninas.

Intrigados com a polêmica e com a baixíssima nota que o filme tem no Imdb (2,9), nós assistimos ao longa e, neste texto, vamos levantar algumas reflexões que o filme traz à tona sobre um tema tão urgente.

Choque de realidade

Logo nas primeiras cenas, vemos Amy, uma jovem senegalesa que acaba de se mudar para a França, chorando. Maquiada, com glitter nos olhos. Quando se trata de uma produção que causa tanto alvoroço em relação ao seu conteúdo, eu já assisto o filme com um pouco de receio do que vou ver. Será que vai ser muito para minha cabeça? A primeira cena me causou frio na barriga.

A partir daí, o filme desenvolve os fatos que culminaram até a cena de abertura. Amy é uma menina de onze anos que vive com sua família religiosa e conservadora, apegada aos dogmas islâmicos. Com sua mãe e seus irmãos mais novos, ela divide um pequeno apartamento em um conjunto habitacional.

A menina absorve tudo a sua volta: os problemas que sua mãe está enfrentando com o casamento de seu pai com uma segunda mulher e a nova cultura que ela é inserida.

Amy é obrigada a participar dos cultos religiosos, onde conhece sua tia, uma mulher idosa que segue a tradição à risca, e se dedica a ensinar a menina o que é “ser uma mulher”.

Na lavanderia do prédio, ela observa uma menina dançando. De costas, com uma blusa curta e uma calça colada, marcando bem o seu corpo. A menina dança e passa o ferro no cabelo com tanta naturalidade, que desperta em Amy curiosidade sobre aquela liberdade.

Eu, enquanto espectadora adulta, senti grande desconforto ao ver a menina, chamada Jess, dançando sensualmente vestida daquela maneira. Porque percebi rapidamente que se tratava de um corpo infantil, ainda em formação, com atitudes de mulher adulta.

Na nova escola, Amy descobre que Jess faz parte de um grupo de meninas que se vestem de maneira provocante e agem de maneira explosiva – são um grupo de dançarinas que têm o sonho de se apresentar em um concurso de dança.

Após aquela cena que me causou desconforto, todas as cenas seguintes, com as meninas, todas de onze anos de idade, visivelmente erotizadas, logo me pareceu estranhamente familiar. Algumas memórias do passado vieram à tona, e outras de coisas que vejo, com frequência, no Instagram e Tik Tok.

Reflexo da cultura de massa

Poderia ser uma cena de Cuties, mas é um videoclipe da Mc Melody, que tem 13 anos de idade

A hipersexualização das meninas é um assunto global e antigo. Um problema da cultura de massa.

Durante o filme, me peguei pensando: será que tudo começou a dar tão errado quando surgiram os smartphones, suas câmeras de alta resolução e as redes sociais, que permitiram que qualquer um publicasse vídeos?

Mas logo me lembrei dos churrascos de família, lá no começo dos anos 2000. Meninas com 7 anos ou um pouco mais, eram contempladas por adultos ao descerem na “boquinha da garrafa”. Sim, essa cena especificamente ocorreu em uma chácara. Meninas de biquíni, com seus frágeis corpos infantis, ganhavam aplausos e gratificação do público adulto ao requebrarem até o chão, ralando na boca de uma garrafa de cerveja.

Fazendo um recorte da cultura da hipersexualização das meninas no Brasil, temos material de sobra para debater o assunto. A cena descrita acima não é um fato isolado, pois naquela época era algo tão comum que chegou a existir uma versão mirim do grupo “É O Tchan”, compositores da canção citada. Por que era natural que crianças exibissem seus corpos de maneira sensualizada na TV aberta?

Hoje, temos a famosa cultura das “novinhas”. Existem incontáveis canções que se utilizam do termo, que caiu no boca a boca com tanta naturalidade, que acabou banalizando a obviedade: essa “novinha” é uma criança.

Curiosamente, a personagem cuja dança me deixou desconfortável no começo do filme me lembrou de uma figura pública brasileira que exemplifica muito o tema da sexualização das crianças. A Mc Melody.

A menina viralizou na Internet quando tinha 8 anos de idade, influenciada pelo seu pai, o empresário e compositor Mc Belinho. O que inicialmente virou uma piada, em uma tentativa de falsete mal-sucedido, abriu caminho para a fama de uma menina que hoje tem inúmeras canções e videoclipes populares no YouTube, aos 13 anos de idade – eu tive que confirmar diversas vezes a idade dela, pois fazendo uma rápida busca no Google, as fotos parecem ser de uma mulher adulta.

Este vídeoclipe, em especial, da música “No Batidão”, exemplifica o tipo de coreografia e figurino sensual problematizados no filme.

Mundos opostos

No filme, Amy caminha entre dois mundos: o da hipersexualização mascarada de liberdade e o outro, conservador, que reduz o papel da mulher como ser submisso.

A menina, assustada com a tradição islâmica, caminha cada vez mais na direção oposta do que lhe é imposto dentro de casa, e está disposta a qualquer coisa para isso.

Ela rouba o celular de seu primo e cria uma conta em uma rede social. O smartphone em suas mãos concede a possibilidade de alcançar o que ela quer. A câmera pode gravar vídeos e as redes sociais divulgar sua imagem.

À medida que Amy integra o grupo das dançarinas, ela mergulha em informações que permitem novos olhares sobre o que é ser mulher.

Ao ver um videoclipe de mulheres adultas fazendo twerks, uma dança muito comum entre as meninas hoje em dia, ela decide implementar aquilo em uma coreografia que poderia fazer sucesso e, assim, ela ganharia o respeito de suas amigas.

É interessante notar como o grupo ganha destaque e é selecionado para a competição de dança apenas após a implementação da coreografia mais adulta, que colocam as meninas de onze anos em poses e atitudes sensuais e eróticas. No entanto, durante a apresentação, enquanto o público rejeita as atitudes, os jurados se mostram especialmente fascinados.

Lembrei dos vídeos curtos, muito comuns, com os quais me deparo com frequência nas redes sociais. São meninas adolescentes, com roupas curtas ou usando biquínis, exibindo seus corpos em danças sensuais e twerks.

É neste sentido que o filme se comunica em uma linguagem universal: troque o idioma francês, e todas as situações, as atitudes e a influência das redes sociais e da cultura de massa no comportamento das meninas vão caber em qualquer lugar do mundo.

Busca por Identidade

Apesar de o filme focar especialmente no comportamento sexualizado das meninas, a história é, principalmente, sobre a busca de Amy por sua identidade.

A história que sua tia conta de como se casou aos onze anos, vestida de véu branco, e que pouco tempo depois deu a luz ao seu primeiro filho, foi aterrorizante para Amy tanto quanto foi para mim.

Por isso, a primeira menstruação da menina me deixou muito nervosa: “e agora, o que vai acontecer com ela? Vai ter um casamento arranjado com um homem mais velho ou vai explorar uma vida sexual de maneira inconsequente?”. Nenhum dos dois aconteceu, mas o filme ainda deixa em seu fim certo gosto angustiante: qual futuro aguarda Amy?

Nessa caminhada em busca de livre arbítrio, a menina encontra, no caminho contrário aos dogmas conservadores, uma nova versão de si, que é para ela seu escape. Isso fica evidente na cena em que as meninas não querem mais dançar com ela, Amy expressa profundo desespero – afinal, aquilo tudo a serve como a única chance de não ser o que lhe foi preestabelecido.

É notável o desespero e medo com que a menina observa a noiva de seu pai, toda coberta pelo véu branco descrito por sua tia – um símbolo opressor para nós, mulheres do mundo ocidental.

Ambos os mundos possuem elementos distintos que causam na mesma medida medo e desconforto, mas cada um deles se comunica com culturas opostas.

Após ver a mulher, Amy foge, sabota a dançarina que tomou seu lugar no grupo e veste sua roupa provocante, cheia de glitter no rosto e vai para o palco mostrar que é uma menina livre.

Em contrapartida, é durante a competição que a voz de sua mãe cantando vem à mente, trazendo para ela a lembrança do lugar de onde veio. A cena inicial do longa revela a catarse por trás da situação: a menina resolve assumir que não sabe exatamente, ainda quem é, mas tem a certeza de que ainda é uma criança.

Então, ela volta para casa e se veste de maneira neutra, com roupas casuais, que são comuns, mas destoante destes dois mundos entre os quais ela percorreu durante o filme inteiro.

Amy, por fim, vai pular corda com as outras crianças na rua, exibindo no olhar a tranquilidade de “ser criança”.

O que esperamos das meninas da nova geração?

Estamos falando de um filme, mas é necessário lembrar que todos nós percorremos um caminho tortuoso de formação de identidade.

Mulheres andam por um caminho muito mais complexo: somos bombardeadas a todo momento por cobranças sociais, familiares e por influência da publicidade e da televisão do que devemos ser. Do que é “ser mulher”.

Não há como fugir do fato de que somos influenciados por tudo a nossa volta, inclusive nossa maneira de pensar, de nos vestir, como nos relacionamos com nós mesmos e como nos comportamos. Meninas, desde muito pequenas, recebem instruções do que devem ser ou fazer.

Cuties explora exatamente isso: em uma cultura de massa onde a influência sobre os padrões de beleza e comportamento recaem de maneira desumana sobre as meninas, que tipo de comportamento estamos esperando da nova geração? Como os pais podem controlar que as influências do mundo digital não afetem suas filhas? Aliás, que tipo de mentalidade estamos formando na nova geração com essa máquina impiedosa de culto à imagem?

No filme, o contraste entre o comportamento infantil e o adulto causa estranhamento e certa aversão.

As cenas em que as meninas se divertem são contagiantes: são fruto de suas naturezas infantis, alheias às regras do mundo. Em contrapartida, são sexualizadas e usam roupas curtas, mas não sabem como se engravida e não sabem exatamente o que é um estupro.

É nessa ambivalência que o filme explora como crianças devem ser crianças, e as influências culturais do mundo moderno corrompem essa fase tão importante.

As redes sociais nas mãos de meninas são uma bomba prestes a explodir. Então, por que nos recusamos a falar sobre isso?

Por que um filme incomoda, mas a realidade não?

Cuties nada mais é do que um reflexo da modernidade, mas então por que ele é considerado ofensivo, se vídeos reais de danças sensuais de menores de idade são publicados nas redes sociais como o Tik Tok e Instagram a todo momento?

A sensação mais angustiante de assistir a Cuties é de que o público pode assistir ao filme e absorver a sua mensagem, mas e se ele cai nas mãos de um pervertido?

Veja bem, é neste ponto que o filme mais uma vez cumpre seu papel. Enquanto as meninas dançam com roupas curtas e coladas, a câmera foca nos detalhes, passando pelos seus corpos inteiros.

O filme nos coloca na condição de como um observador vê as cenas na vida real. Ou seja, os corpos das meninas podem ser apreciados como objetos de desejo por alguém.

É neste ponto que Cuties pega mais pesado. A mesma situação pode acontecer nas redes sociais com os vídeos das jovens de biquíni dançando, ou na rua.

A cultura da sexualização feminina tem camadas sociais profundas, que devem ser acessadas a fim de trazer à tona debates urgentes. Para tanto, é preciso estar disposto a encarar toda a responsabilidade que isso traz.

A violência sexual de Cuties

A indicação do filme é 16 anos, portanto não se trata de um conteúdo voltado para crianças. A diretora direciona o longa para os adultos com o propósito de nos fazer pensar sobre nossa atualidade.

Na abertura, inclusive, há o aviso de conteúdo de sexual, e eu logo fiquei tensa.

Ao contrário do que eu temia, durante o filme inteiro não há uma cena sequer de violência direta contra as meninas. A violência acontece de maneira indireta: através dos olhares de homens adultos sobre seus corpos. As cenas parecem sutis e podem passar despercebidas, porque não há verbalização dos adultos sobre seus desejos, a comunicação está no olhar.

Maïmouna Doucouré é uma mulher e assim como toda mulher cresceu sabendo identificar como um adulto olha para seu corpo. É uma realidade triste, mas converse com qualquer mulher, que você vai entender do que eu estou falando.

A sagacidade de Maïmouna é exatamente trabalhar esse tipo de violência tão silenciosa, mas na mesma medida tão corrosiva.

Além de tudo, a violência está no comportamento das meninas: no que é esperado delas, no que é cobrado delas e nos reflexos que as influências culturais têm sobre suas escolhas.

Todo o filme, de fato, é muito violento.

A linha tênue entre conservadorismo e hipocrisia

O público não está preparado para um filme que esfrega em nossas caras a realidade como ela é. No entanto, este é um dos papéis da arte: incomodar para que a gente se mova longe daquilo que nos conformamos como normal.

Cuties é um filme de história consistente, muito bem dirigido e que retrata a realidade de forma tão fiel, que é difícil consumi-lo como simples ficção – ele poderia ser um documentário.

A diretora se propõe a tocar uma ferida pulsante para a qual escolhemos não olhar durante muito tempo, e ela sabe dos desafios de colocar um espelho diante as pessoas.

Quando tratamos de hipersexualização das crianças, é necessário se aprofundar nas camadas sociais mais profundas deste assunto complexo que está ligado a séculos de patriarcado e condutas machistas.

Olhar para essas questões seria assumir nossa responsabilidade e ter que retirar o véu daquilo que não queremos ver, de uma sociedade onde corpos femininos são sinônimo de lucro e propriedade. De uma realidade construída ao longo dos séculos, e da qual hoje tememos. O problema não está em Cuties.

Mas quem quer olhar para estes assuntos quando é mais fácil apelar para o fácil discurso sensacionalista de que “devemos proteger nossas crianças”?

É preciso estar atento, pois a linha entre o conservadorismo e a hipocrisia é tênue.


O que você achou de Cuties?


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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.

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