Música

Roger Waters no Brasil: o órfão do pós-Guerra ainda resiste

Roger Waters tem causado polêmica com sua turnê Us + Them pelo Brasil. Inaugurada em 9 de outubro, na cidade de São Paulo.

Eu estava lá, entre as 45,5 mil pessoas que observaram atônitas o espetáculo.

Um show de luzes, efeitos sonoros que vinham das 4 torres de som espalhadas pelo estádio com funcionamento independente e três painéis colossais mostraram pelo quê o fundador do Pink Floyd sempre cantou e ainda resiste.

O repertório foi construído de maneira em que as músicas dialogam umas com as outras e formam uma única mensagem poderosa.

Pontualmente, às 21 horas, os telões se acenderam. A imagem de uma mulher sentada na beira da praia, contemplava um céu azul e as ondas do mar.

Ansiosos, alguns continuaram conversando e gesticulando sobre as expectativas. Outros, mais atentos, tentavam desvendar como aquela imagem se encaixaria no show.

Um som que crescia como as ondas do mar, reverberava pelas torres de som. De repente, um canto árabe invadiu o estádio. Mesclado com o som das conversas, aquilo causou estranhamento em alguns.

Quando as luzes se apagaram, o espetáculo: gradualmente, o azul do céu foi substituído por tons de vermelho. O céu rubro. E o fim da serenidade. Para a mulher da cena, e para o público.

A imagem é engolida para o centro de um planeta, que antes azul, agora vermelho e pulsava. Como um órgão poderoso do corpo celeste.

Entre “Speak to Me”, “Breathe” e “One of These Days”, uma pessoa transporta a cor vemelha por onde passa: o ódio, a violência, o sangue, a loucura e o desespero — a núvem vermelha que dominou o mundo.

Logo se vê que Waters não trouxe entretenimento. Trouxe um espetáculo para fazer seu público pensar, sentir e interpretar.

O cenário da mulher que descansava na areia, de longos cabelos escuros, representa não apenas a denúncia ao descaso com os refugiados presente em seu novo álbum “Is This The Life We Really Want”, de 2017.

Mas narra também o curso da história da humanidade. Hora paz, calmaria, progresso. Hora bárbarie, guerra e horror.

Como um ciclo que se repete eternamente. Concêntrico como um relógio impiedoso em marcar o tempo, como seguimos em “Time”.

“Welcome to The Machine” deixa tudo mais explícito: bem-vindo à máquina, que mói e massifica.

Sem querer, nos pegamos em uma onda filosófica entre o transe de ver os clássicos do Pink Floyd ao vivo e as imagens dispostas nas grandes telas. Tudo de uma vez só. Sem perceber, estamos pensando e digerindo.

Em the “Last Refugee”, a mesma mulher que sentava na areia da praia retorna como uma árabe que dança entre a velha memória, em um cenário feliz em seu país, e entre a outra, mais velha e refugiada dançando pelo barraco em que encontrou abrigo longe da sua nação. Um boneco na beira da praia relembra o menino sírio.

A faixa do novo álbum soa como um lamento que Waters compartilha com os refugiados. Um canto que os dá voz, e ao mesmo tempo lamenta profundamente a situação.

Algo mais evidente em “Déja Vú”. Onde ele confessa como faria tudo diferente se fosse Deus. E o Deus, aqui, fica para livre interpretação. O Deus deles, o seu e o meu.

A melancolia e sentimentalismo abordado no início do show apenas preparam o público para a onda furiosa e rebelde, que é anunciado no fim do primeiro ato com “Another Brick In The Wall”.

Crianças da cidade de São Paulo foram convidadas para marchar ao longo da música que é um hino contra a mecanização e sistematização que nos é imposta desde crianças. Nos espaços de vigia e punição. Que nos preparam para a grande Máquina.

Elas então rasgam a camiseta e revelam um grande RESIST estampado no peito. Um dos momentos que marcam a pura catarse que invadiu a multidão.

Durante 20 minutos que o músico deixou o público, nos telões foram estampados sobre o quê exatamente resistir: ao neofascismo, aos crimes de guerra, ao militarismo, ao antisemistismo, à destruição do meio ambiente, à homofobia e tantos outros assuntos.

O público começou a se agitar. Gritos de ELE NÃO foram lançados ao vento, compartilhando a catarse experienciada. As frustrações e insastistações começaram a ganhar voz, junto à de Waters.

Foi ali que os fãs perceberam pelo quê o cantor veio. Pelo quê ele sempre protestou na banda de rock progressivo.

Alguns fãs se ofenderam ao ver o nome de seu candidato estampado em um telão junto à outros líderes mundiais que ressurgem com a força de um novo fascismo através do mundo.

“Dogs” , e “Pigs” na sequência, abrem um novo ato furisoso. Waters mostrou os dentes. E começou a incomodar sem dó.

As faixas que fazem parte do álbum “Animals”, releitura livre do livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, apresentaram os dois personagens do capitalismo: os porcos, líderes, e os cachorros, seus protetores.

O porco, representando o líder covarde que se esconde atrás de seus cães de guarda, também expôs a alta sociedade. Denunciada através de máscaras de porco que Waters e os membros da banda vestiram. Ele serviu champanhe. Tirou a máscara. E alertou em letras garrafais: PORCOS COMANDAM O MUNDO. TRUMP É UM PORCO. FODAM-SE OS PORCOS.

Imagens satíricas do presidente americano também ilustraram a música.

Um porco que flutuava sobre a multidão foi destruído pela mesma, em um ato simbólico que mostrou como o público é protagonista do show, não Waters. Ressaltando na mais pura espontaneidade que o poder emana do povo.

Da cadeira onde eu estava sentada, vi pessoas saindo por diversos lados do estádio. Outras, incomodadas, exigiam menos do show.

Em “Picture That”, o cantor pede para o público imaginar uma multidão que está claramente insana, uma criança com a mão no gatilho, um tribual sem leis e um líder sem cérebros.

Quando menos se esperava, no telão de 70 metros, declarou para as mídias que cobriam o evento e para o público, um grande: ELE NÃO. A multidão veio a loucura, e uma atmosfera tensa invadiu o Allianz Parque.

As vaias se misturaram com os aplausos e os gritos contra o líder da extrema direita. Os gritos dos ofendidos vinham principalmente das cadeiras. De quem pagou mais caro para estar ali. Dos que sentiram a pontada durante Pigs.

Jogaram copos de cerveja, que custava 10 reais a lata, em quem se levantava para aplaudir. Em quem bradava aos pulmões o que Waters veio para desespertar: Libertação.

Não foi uma vez só. ELE NÃO voltou às telas na música “Brain Damage”.

Entre as imagens de guerra e crimes de Estado expostas no grande painel que estava atrás do cantor, ele fez seu público se incomodar, fez chorar, fez rir, fez questionar.

Eu, ingênua, fui na esperança que ele apenas dissesse algumas palavras no meio do show. E ele deu muito mais do que eu e o público esperávamos.

Mas ainda falou no microfone:

“Eu sabia que isso ia acontecer porque em São Paulo, e na América do Sul em geral, vocês têm a fama de terem muito amor no coração”, disse ignorando completamente as vaias.

“Vocês têm uma eleição importante em três semanas. Vão ter que decidir quem querem como próximo presidente. Sei que não é da minha conta, mas eu sou contra o ressurgimento do fascismo por todo o mundo. E como um defensor dos Direitos Humanos, isso inclui o direito de protestar pacificamente sob a lei. Eu preferiria não viver sob as regras de alguém que acredita que a ditadura militar é uma coisa boa. Eu lembro dos dias ruins na América do Sul, e das ditaduras, e foi feio”, completou.

Algumas pessoas deixaram o show enfurecidas, dizendo que iam botar fogo nas camisetas das banquinhas. Na saída, vi copos personalizados quebrados no chão. “Quem é ele para meter o nariz no país dos outros?”, ouvi.

Waters perdeu seu pai para a Segunda Guerra, e sua mãe era militante socialista filiada ao Labour Party, fatos importantíssimos que culminaram na formação pessoal do cantor, e que definiram toda sua ira e insatisfação debruçadas em álbuns do Pink Floyd.

Especialmente no álbum The Wall, uma construção íntima e pessoal que lança catarse sobre as aflições e histórias de sua vida.

Álbum esse que seus fãs insatisfeitos com o show ouviram a vida toda. Mas nunca pararam para realmente escutar. Vestiram camisetas a vida toda, mas nunca tinham buscado a origem da banda.

Algumas vaias não seriam capazes de intimidá-lo. E não o pararam mesmo. Apesar de ter sido censurado em algumas cidades, não perdeu a acidez em denunciar a repressão.

Em Salvador, homenageou o capoeirista Mestre Moa do Katendê, morto dentro da própria casa por ter se declarado contra Jair Bolsonaro, em um bar.

No Rio de Janeiro, levou a família da vereadora Marielle Franco até o palco, morta e sem justiça há 227 dias.

Ontem, 27/10, sob ameaça de prisão por declarações políticas no palco após às 22h, segundos antes do tempo limite, declarou novamente para a cidade de Curitiba: ELE NÃO.

Aos 75 anos de idade, o orfão do pós-Guerra ainda resiste, e está mais furioso do que nunca. Órfão porque, junto com o pai na Segunda Guerra, ele perdeu a segurança e estabilidade, o sonho nacionalista e toda confiança sobre o autoritarismo, que mói a criatividade em uma máquina massificadora. Do qual ele se libertou, e desde então vem libertando uma legião durante toda sua carreira.

Ele esteve no Brasil, ao lado dos fãs, em um dos momentos mais tensos, com a democracia sob ameaça nunca vista há 30 anos. Respirando a mesma atmosfera que nós, chorando pela paz e, acima de tudo, alertando os riscos de colocar um tirano no poder.

Uma noite que lembrarei até o último dia da minha vida. É uma sensação única ver meu ídolo no palco gritando e ilustrando para uma massa tudo o que eu gostaria de fazer. Falando por mim. Por eles. Por todos.

O concerto é um ato político que atiça nosso espírito contra a mecanização dos sentimentos que fazem de nós humanos, e nos acorda para participar de um verdadeiro protesto pacífico.

A arte denuncia a história. E tem capacidade de diálogo íntimo com cada um da multidão. Assim como tem o poder de uní-la. É exatamente o que o cantor faz com maestria, convidando um mar de gente para cantar e gritar, juntos. Pedindo pelos mesmos direitos. Resistindo juntos contra a intolerância.

Nunca vendido, nunca calado, dominado pela rebeldia, Waters leva em sua turnê Us + Them, sua epifania da década de 70, ainda tão atual em um mundo tomado pela onda neofascista. Nós e eles. Unidos, vencemos. Separados, caímos.


Raquel Rapini

Jornalista movida pela curiosidade de saber mais sobre qualquer assunto. Escreve sobre arte, cultura, games e assuntos gerais relacionados às ciências, sociedade e mundo geek.

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